Reorganizar as demonstrações financeiras para determinação do valor e da performance da empresa
As demonstrações financeiras tradicionais não favorecem a análise financeira de empresas. Repare-se por exemplo que o balanço mistura ativos operacionais, não-operacionais e fontes de financiamento. A demonstração de resultados mistura resultados de exploração, resultados não recorrentes e resultados financeiros. Para se avaliar o desempenho, o risco e a criação de valor, é necessário ajustar as demonstrações financeiras de modo a analisar-se o core business isolado dos efeitos não recorrentes e da estrutura de capital.
De ativo fixo a capital investido
Partindo do balanço contabilístico, a primeira tarefa consiste na sua reorganização de modo a obter-se o balanço funcional.
Num artigo anterior descrevi de forma mais detalhada o que é o balanço funcional e que tipo de ajustes são necessários para se chegar até ele. De uma forma resumida, o balanço funcional reorganiza o balanço tradicional por ciclos:
- O ciclo de investimentos, que é composto pelos capitais permanentes (nas origens de fundos) e pelo ativo fixo (aplicações de fundos). A diferença entre capitais permanentes e ativo fixo constitui o fundo de maneio,
- O ciclo de exploração onde se incluem os passivos não-financeiros (origens de fundos) e os ativos correntes (aplicações de fundos). A diferença entre estes ativos e passivos representa as necessidades em fundo de maneio;
- O ciclo de operações financeiras que é dado pela tesouraria ativa (disponibilidades e outras aplicações financeiras de curto prazo como aplicações de fundos ) e pela tesouraria passiva. A diferença entre ambas é a tesouraria líquida.
A reorganização do balanço desta forma permite avaliar o equilíbrio financeiro entre as origens e aplicações de fundos assim como segregar os ativos operacionais dos financeiros e da estrutura de capital.
Note que esta reorganização do balanço exige mais do que uma mera transposição do passivo financeiro de curto prazo para o lado do ativo. Ela requer que se separem (e por vezes, reclassifiquem) os ativos operacionais dos não-operacionais e financeiros. Este trabalho não pode ser executado de forma mecânica e requer que se investiguem detalhadamente as demonstrações financeiras, incluindo as notas às demonstrações financeiras.
É a partir do balanço funcional que chegamos ao capital investido. O capital investido é crucial para avaliar o desempenho da empresa, nomeadamente quanto à sua rentabilidade e eficiência na utilização de recursos.
O capital investido pode ser calculado de duas formas:
- Somando as aplicações de fundos: ativo fixo + necessidades em fundo de maneio + tesouraria ativa ou
- Somando as origens de fundos: capitais permanentes + dívida financeira corrente.
Ambas devolverão o mesmo valor.
De resultado líquido a resultado operacional líquido de impostos (ROLI)
O próximo passo será reorganizar a demonstração de resultados de uma forma consistente com a reorganização do balanço. Interessa-nos saber que resultados são produzidos com o capital investido.
Assim, podemos reorganizar a demonstração de resultados contabilística na seguinte estrutura:
- Volume de negócios
- (+) Outros proveitos operacionais
- (-) Custos e perdas operacionais variáveis
- (=) Margem de contribuição
- (-) Custos e perdas operacionais fixos
- (=) Excedente bruto de exploração
- (-) Provisões
- (-) Depreciações e amortizações (*)
- (=) Resultados da exploração
Os resultados de exploração traduzem assim apenas os resultados que são gerados pelas operações. Tal como se a empresa possuísse apenas ativos operacionais e fosse financiada exclusivamente por capitais próprios.
Para obtermos o Resultado Operacional Líquido de Impostos (ROLI), teremos de deduzir o imposto sobre o rendimento. No entanto, porque na demonstração de resultados contabilística, este imposto incide sobre todos os resultados (incluindo os não operacionais, extraordinários e financeiros), teremos de recorrer a um cálculo adicional e estimar o valor do imposto ajustado.
Este é o cálculo que separa o valor do imposto exclusivamente incidente sobre os resultados operacionais e correntes.
Tendo em conta que a determinação do valor do imposto sobre o rendimento pode ser bastante complexa (com todas as diferentes regras de determinação da matéria coletável, deduções e incidências há um resultado fiscal e um resultado contabilístico que é forçosamente diferente), podemos optar por simplificar o cálculo do imposto ajustado da seguinte forma:
- Calcular a taxa de tributação efetiva, dividindo o valor do imposto sobre o rendimento pelos resultados antes de impostos e
- Aplicar essa taxa aos resultados de exploração.
Assim teríamos:
- Resultados da exploração
- (-) Imposto ajustado
- (=) Resultado operacional líquido de impostos
O ROLI é o valor que nos interessa para avaliar a performance das operações da empresa e é este o valor que servirá de base para a determinação do free cash flow e para o cálculo da rentabilidade do capital investido.
O ROLI é o resultado disponível para todos os investidores, acionistas e credores - ao contrário, do resultado líquido que é o resultado disponível apenas para os acionistas (ou sócios) da empresa - e é independente da estrutura financeira da empresa.
Então, por ser independente da estrutura de capital, o ROLI permite a comparação de empresas com diferentes graus de alavancagem, evitando assim a distorção por ela provocada em determinados rácios de desempenho.
De fluxo de caixa operacional a free cash flow
Por fim, para obtermos o free cash flow – o fluxo de caixa gerado pelas operações e igualmente independente de efeitos financeiros e não-operacionais, teremos de ajustar a demonstração de fluxos de caixa.
O free cash flow é o fluxo líquido de tesouraria disponível para todos os investidores. Quando avaliamos o valor de uma empresa partimos de uma projeção do free cash flow que será posteriormente descontada para o momento presente através da taxa de custo médio ponderado do capital.
A interpretação do valor obtido com o cálculo do free cash flow é idêntica à que vimos anteriormente no cálculo do ROLI: qual o fluxo de caixa gerado pela empresa se ela dispuser apenas de ativos operacionais e se se financiar inteiramente por capitais próprios.
Para calcular o free cash flow adotamos a seguinte estrutura:
- ROLI
- (+) Provisões e depreciações
- (-) Investimento em necessidades de fundo de maneio
- (-) Investimento em ativo fixo operacional
- (-) Variação de caixa e equivalentes
- (=) Free cash flow
Esta forma de determinar o free cash flow difere da forma tradicional na medida em que partimos do ROLI em vez do resultado líquido podendo em todo o caso ser concebida a partir de dois balanços funcionais consecutivos e de uma demonstração de resultados ajustada com as definições acima descritas.
Assim, com a informação sobre o capital investido, o ROLI e o free cash flow sabemos muito mais sobre a empresa e da sua capacidade de criar valor. Sabemos se tem um modelo de negócio consistente e robusto ou se depende de efeitos financeiros ou de eventos fora do controlo da gestão.
A análise financeira, e em particular a avaliação de empresas, não pode nunca ser mecanizada mas a utilização destes conceitos pode contribuir significativamente para a tomada de decisão.
(*) – Uma nota final sobre as amortizações: como o tratamento contabilístico dos ativos intangíveis difere entre ativos adquiridos e ativos desenvolvidos internamente de forma a que apenas aqueles sejam amortizados, convém excluir o efeito das amortizações se estivermos a comparar duas empresas com o mesmo tipo de ativos intangíveis mas que diferem quanto à forma como foram produzidos. Dessa forma evitamos penalizar as empresas que adquiriram ativos intangíveis.